Leia este artigo instigante, publicado no Jornal “O Estado de São Paulo”, no dia 13 do corrente mês, escrito por João Marcos Coelho, e que espanta, mais uma vez, aquela velha estória de que o jazz morreu. Como já foi dito anteriormente, e substituíria a palavra jazz por “música instrumental” : “Morreu, mas passa muito bem obrigado”.
Fui “formado” no campo jazzístico pela estética norte-americana. Tive acesso aos discos da ECM em uma loja de departamento, que havia em Salvador. Bons tempos aqueles, em que comprávamos LP´s de ótimos selos europeus e norte-americanos por preços que cabiam no bolso. Em sua maioria lançamentos.
Curiosamente o primeiro disco da ECM foi de Keith Jarrett, norte-americano, mas que já apresentava algo além do padrão habitual.Quando tive acesso a discos do Oregon, grupo norte-americano; Jan Garbarek, saxofonista norueguês e que teve frutífera parceria com Egberto Gismonti; do grupo CODONA, nome resultante das iniciais dos componentes do grupo, Collin Walcott, DOn Cherry e NAná Vasconcelos; do guitarrista e tecladista Ralph Towner, que também tocava no Oregon; do baixista Gary Peacock; do vibrafonista Gary Burton; dos guitarristas John Abercrombie e Pat Metheny, pirei de vez.
Observem que os americanos foram muito bem recebidos no selo.O segredo era fazer algo diferente dentro da proposta criativa de Manfred Eicher . Alerto que não há desrespeito à escola norte-americana, pois seus grandes nomes são figurinhas carimbadas nos grandes festivais de jazz europeus e seu papel histórico está consolidado. O ponto é: A trilha continua aberta. A questão é ter coragem de dar o primeiro passo em direção a ela......Segue o artigo“CDs de artistas do continente chamam a atenção pelo vigor e pela originalidade ."Eu não sabia que era tão previsível."
Foi assim que um músico de jazz reagiu ao ver o resultado da análise de suas gravações por um musicólogo. As repetições de padrões nas sequências harmônicas e nas evoluções melódicas dentro dos improvisos em geral ultrapassam os 50%.
E o que isso quer dizer? Simples: o músico improvisa como fala, isto é, faz um mergulho intuitivo nos materiais sonoros que construíram sua vida, desde a infância. Este cordão umbilical é tão forte que mesmo na música clássica, ou erudita, o fenômeno se repete. A primeira composição de Gustav Mahler, por exemplo, aos 6 anos, foi uma polca e, a título de introdução, o menino escreveu uma marcha fúnebre. Um padrão que se repetiria em suas monumentais nove sinfonias, entre vida e morte, música popular e música erudita.Até os anos 60, todo músico não-americano que se dedicasse à música improvisada tentava emular a linguagem dos jazzistas norte-americanos.
Foi assim com brasileiros tão talentosos como os saxofonistas Casé ou Vitor Assis Brasil; e também com a maioria dos grandes músicos franceses durante meio século, desde a ida do maravilhoso Sidney Bechet para Paris em 1925.Hoje, surpreendentemente, a equação se inverteu. É difícil encontrar originalidade real entre os músicos norte-americanos, presos demais a surrados esquemas de improvisos pinçados dos manuais do Berklee College de Boston.
Na melhor das hipóteses, boa parte do jazz que se pratica hoje nos EUA é pobre clonagem dos anos de ouro do hard bop (quando convencional) e do free de Ornette Coleman e AACM de Chicago (quando experimentais). Na Europa, ao contrário, florescem mil e uma abordagens diferentes da música improvisada. Utilizam-se, claro, alguns parâmetros jazzísticos. No entanto, cada vez mais se afirmam identidades sonoras próprias.É isso que torna o jazz praticado na Europa bem mais interessante e consistente.
Três exemplos, sintomaticamente recém-lançados pela mesma gravadora, a ECM de Munique, comprovam a tese de modo notável. Os líderes de cada um dos CDs são: o trompetista italiano Enrico Rava, que completou 70 anos no dia 20; o clarinetista-saxofonista francês Louis Sclavis, 56 anos(na foto); e a cantora alemã-iraniana Cymin Samawatie, de 33. Três gerações sucessivas, que espelham de modo exemplar a evolução das relações entre os músicos não-americanos com o jazz no último meio século.New York Days sintetiza bem a notável carreira de Rava, uma espécie de sumo-sacerdote do jazz italiano. Fã incondicional de Miles Davis e Chet Baker, tocou com os grandes radicais do free dos anos 60/70, como Steve Lacy, Don Cherry, Cecil Taylor, Charlie Haden e Carla Bley, entre outros. Assina mais de 30 gravações como líder e outras 100 como sideman. Em New York Days, reúne um quinteto de all stars: do lado italiano, o formidável pianista Stefano Bollani; e do norte-americano, o ótimo e nem sempre corretamente avaliado saxofonista Mark Turner, o contrabaixista Larry Grenadier (ex-Brad Mehldau trio) e Paul Motian (ex-Bill Evans e Keith Jarrett trio).
O clima é quase sempre plácido e contemplativo, bem ao estilo ECM sound. Não há novidades, mas o virtuosismo jazzístico estrito é maravilhoso. O trompete de Rava paira soberano em dez temas próprios e um coletivo, guiando performances extraordinárias do piano sutil, econômico e preciso de Bollani, além de irretocáveis criações instantâneas de Turner. Sobressaem, do lado mais inventivo, Improvisation I e Improvisation II; do lado acessível, o bolero minimalista Luna Urbana; e a refinada Certi Angoli Segreti. O pulso regular - marca registrada do jazz norte-americano - está quase ausente. A primeira faixa balançada é a sexta, a convencionalíssima Thank You, Come Again.Pulso regular, aliás, é uma presença insólita no incrível CD de Louis Sclavis. Os compassos são quase sempre ímpares, o que propicia enorme instabilidade rítmica, agravada por enorme atrevimento harmônico. A formação inclui dois saxes, guitarra, contrabaixo e bateria.
Lost on the Way propõe uma releitura da Odisseia de Homero. Ele nos coloca nos ombros de Ulisses, lançando-se a uma viagem sonora surpreendente. Está tudo lá: o sonho, as sereias, a tempestade, a última ilha e o choro final de Penélope.Mas, se a partida é tensa (De Charybde en Scylla), a sequência (La Première Île) instaura o clima de um jazz de câmara mais ligado aos parâmetros sonoros europeus do que ao jazz (O Sono das Sereias e L"Heure des Songes).
As surpresas sucedem-se em Aboard Ulysses"s Boat e na incrível Les Doutes du Cyclope. Um tema quase atonal e muito tenso, Des Bruits à Tisser, nos encaminha para o réquiem final, L"Absenc''. Gravação notável, de música improvisada da melhor qualidade - mas bem longe do jazz convencional.Rava e Sclavis são músicos europeus reconhecidos. A grande surpresa de Manfred Eicher, o capo da ECM, é o grupo Cyminology, liderado pela cantora alemã-iraniana Cymin Samawatie. Ela nasceu em Braunschweig de pais iranianos e estudou música clássica a sério. Lidera o grupo criado em 2002 na Alemanha e já tinha dois CDs gravados. Eram discos convencionais, um jazzinho meio capenga clonado dos norte-americanos.Em poucas intervenções, Eicher fez algo simples: levou-a a mergulhar em sua raízes, acentuar as diferenças (quem diz é ela mesma, numa entrevista recente). O resultado é extraordinário. Provavelmente a gravação mais original de música improvisada deste ano.
As Ney - este é o título do CD - reúne composições de Cymin e de outros membros do quarteto: o pianista Benedikt Jahnel, 28 anos, nascido na França mas criado na Alemanha; o contrabaixista Ralph Schwarz, 37 anos, de Braunschweig; e o baterista Ketan Bhatti, nascido em Nova Délhi. Antes que alguém pergunte: não se trata da famigerada "world music", empacotada pela indústria cultural para consumo fácil como produto exótico.Cymin faz letra e música em cinco das oito canções. Em outras três, mergulha na refinadíssima poesia sufi persa: As Ney, por exemplo, foi composta sobre versos do poeta persa Rumi (1207-1273). São 10 minutos de puro encantamento, e a chave para se mergulhar neste universo poético-musical tão belo.A canção da flauta de cana associa a sedução da melodia da flauta com o som do amor. "Quanto mais descrevo e explico o amor, quando me apaixono me envergonho de minhas palavras." A voz sem vibrato de Cymin entoa uma melodia angulosa e a estrutura da canção é o microcosmo de um "concerto" vocal: exposição dos versos até os 5"20; o piano aéreo inicia então uma ponte sobre pedal que reenvia a uma coda (repetição do tema inicial); pausa marcada; Cymin faz então uma cadência-solo, improvisa, mas não à maneira jazzística, e sim modal (a música persa estrutura-se em modos ou escalas, sobre as quais as melodias escorrem). São quase 2 minutos a capela. Aos poucos, ressurgem o pedal no piano e contrabaixo, esparsa percussão e a voz retorna, não para repetir o tema de abertura, mas numa nova digressão curta, que dá lugar a um final pianíssimo dos demais instrumentos.Cada uma das oito composições revela um mundo tão rico quanto o descrito em As Ney. E, tanto no nível poético como musical, onde o improviso reina soberano. Como no jazz convencional. Jamais se busca, porém, o virtuosismo. É música antivirtuosística por excelência.
Não se quer provar nada a ninguém; apenas partilhar dores e alegrias, versos e sons, poesia e música.Os versos, tanto de Cymin quanto dos poetas persas, quase sempre falam de música, sons ou instrumentos. Como Resonating, por exemplo, de outro grande poeta sufi, Hafiz (1325-1390). Untold, da poeta iraniana contemporânea Forough Farrokhzad (1935-1967), brinca com os opostos som-silêncio e fala de desejo dela: "Atingir os ouvidos de todo o mundo/entoando minha ardente canção."Tamanha vitalidade vinda de músicos italianos, franceses, alemães, indianos e iranianos só prova que ninguém é geograficamente dono do jazz.
Pois fiquem certos: quando ele é assim entendido - como universo das músicas improvisadas aberto e em constante transformação - sempre nos surpreenderá. Afinal, a surpresa está no DNA do improviso.”
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